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Época das chuvas

Em direção a Inthein, e também a uma das maiores molhas da minha vida (Foto: Ruben Vicente)

Viajar para o Sudoeste Asiático no Verão europeu tem um problema, está-se em plena época das chuvas e a monção atinge em força o continente, e Myanmar não é excepção. Atinge o suficiente para assustar a maioria dos turistas e empurrá-los para a época alta que começa a partir de Novembro, altura em que começa a época seca. Mas não assusta o todos, a julgar pela quantidade de famílias de “nuestros hermanos” em “vacaciones” com que constantemente me ia cruzando em Yangon.

Apesar de o nível de água subir tão dramaticamente como a quantidade diluviana que cai do céu, e apesar de por pouco nos ter mexido nos planos numa ou outra ocasião, a verdade é que não é tão mau quanto possa parecer. Para além de todos os factos de se evitar a época alta, a verdade é não se trata de um dia de chuva contínuo e irritante a que estamos habituados, no Sudoeste Asiático cai toda de uma vez, e muitas vezes à hora marcada. Quando estive no Cambodja o céu começava a fechar depois de almoço, a meio da tarde abriam-se as comportas de uma barragem e durante meia-hora ou mesmo uma hora caia água continuamente, para depois parar. Até ao dia seguinte à mesma hora, mais minuto, menos minuto. Em Myanmar o padrão parecia ligeiramente diferente, tendencialmente as manhãs eram chuvosas, algo que arruinou todos os planos para fotografias ao nascer do Sol, para dar lugar a tardes soalheiras.

Rapidamente se ajusta o ritmo à vontade da chuva e quando esta dá tréguas é aproveitar o resto do dia. Ajustar os motivos fotográficos às condições existentes, não preocupar com a lama entre os chinelos e os dedos e suportar estoicamente a imensa humidade da estação, bem mais insuportável que a chuva.

Num alpendre com o nosso barqueiro à espera que a chuva abrande.

Mas de vez em quando a chuva insiste em não parar, ou abrandar, obrigando a paragens forçadas. Como em Inthein quando um dia em que a chuva intermitente nos acompanhou praticamente desde manhã que à tarde degenerou numa longa chuva torrencial, ainda mais que o normal, e que obrigou a esperar e abortar o resto da tarde. Entre nós e um banho quente estava cerca de uma hora de viagem num pequeno barco a motor pelo Lago Inle.

A arrumar a banca, os barcos de turistas só voltarão no dia seguinte

Quando se tem um trajecto rígido, um programa cuidadosamente delineado ao mais pequeno pormenor, ao segundo, um percalço destes é suficiente para arruinar o dia, primeiro por ter de se reajustar o dito plano, depois pela incerteza de ser atingido pela intempérie (uma molha é algo que crescemos a evitar) e por fim pela ânsia de chegar ao conforto de casa, neste caso do hotel.

Quando se anda ao sabor das coisas rapidamente se encontra um plano B, C ou mesmo Z, até porque nem sempre chega a haver plano A. Em muitos casos o que resulta daqui é algo tão simples mas enriquecedor como sentar para ver e ouvir, descansar ou escrever um rascunho no caderno.

A chuva continuou e continuou e continuou e a saída óbvia era a tal viagem de regresso ao hotel para secar o equipamento, sempre sob um dilúvio e contando apenas com uma providencial tela oleada para me proteger. Nunca fomos à vila piscatória no outro lado do lago, mas nem tudo tem de ser visto de uma vez, ficam sempre desculpas para o regresso. O que ficou do dia foi provavelmente a maior molha da minha vida…

Voltava já amanhã para apanhar outra!

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Maratona de 10 horas (parte II): num autocarro sem ar condicionado mas com janela aberta

O meu lugar era naquela janela aberta mais ou menos por cima da roda traseira, foto tirada na única paragem digna desse nome.

Não esquecer de ler a primeira parte desta viagem em Maratona de 10 horas (parte I): num tuktuk a meio da noite

O tuk-tuk parou mesmo em frente ao autocarro que nos iria levar a Nyaung-U, coisa habitual e bastante útil em Myanmar, em especial nas enormes e caóticas estações de Yangon ou Mandalay. E apesar de ainda ser escuro, não eram cinco da manhã, não foi preciso muito tempo para me perceber que a caixa de fósforos onde ia passar o resto do dia era pouco melhor que todas as outras com que me tinha acabado de cruzar no caminho, e sobre os quais tínhamos feito piadas, umas atrás das outras. O karma tem sentido de humor, por sinal bem estranho e que nos troca as voltas quando menos esperamos… O que nos esperava era um minubus coreano reciclado e já com bastante uso, muito mesmo, embora uma boa parte desse uso nem sequer será birmanês. Myanmar é o fim de linha de sucata da região, autocarros: camiões e automóveis que já não passam na inspeção na Coreia do Sul, Japão e provavelmente Tailândia vêm aqui parar, vêm para aqui ganhar um novo fôlego e ser usados literalmente até partir.

Ao sair do tuk-tuk fui recebido pelo sorriso caloroso do condutor enquanto dizia “foi uma viagem acidentada!”. Pois foi, mas não deixava de pensar que o que vinha a seguir não era muito melhor… Fomos “encaminhados” para o nosso lugar (que apesar de tudo havia lugares marcados), que é outra maneira de dizer que andei feito parvo por momentos à procura dos números à minha volta, até que um dos funcionários veio em nosso auxílio e nos apontou os lugares, sabia de cor, afinal éramos os únicos estrangeiros e continuaríamos a sê-lo durante toda a viagem. Horas depois reparei que os números estavam escritos nas costas de contraplacado dos bancos, tão esbatidos que quase que se confundiam com a cor da madeira, além disso estavam em birmanês, o que não teriam ajudado mesmo que se tivesse reparado logo quando chegámos. O lado oposto dos bancos, a parte onde nos sentamos, eram pouco mais que tábuas cobertas por um tecido verde e gasto, pelo meio uma fina camada de esponja que em pouco suavizava a dureza das tábuas. Enquanto nos tentávamos acomodávamos a um lugar demasiado alto e com umas costas demasiado verticais a nossa bagagem eram carregada como todas as outras malas, sacos e caixotes: por debaixo dos pés, de repente o espaço vazio entre  os meus pés e o chão desapareceu. Menos um problema!…

E há quem se queixe do espaço para as pernas nos aviões. Sim, aquilo é uma chapa de metal apontada às minhas canelas, ou joelhos dependendo da minha posição

Durante a hora de tuk-tuk até chegar ao terminal várias vezes fui reconfortando o espírito pensando que mais um pouco e estaria no autocarro, poderia encostar-me e dormitar um pouco antes que o calor apertasse. Agora que claramente isso não ia ser possível a minha luz ao fundo do túnel passou a ser a piscina do hotel em Old Bagan onde iria ficar os dias seguintes (que viajar não pode ser só dureza e desconforto), com a diferença que esta luz ao fundo do túnel estava agora a uma dezena de horas de distância.

A pouco e pouco foram chegando os restantes passageiros, alguns iriam fazer a viagem quase toda conosco, como a jovem mãe e o filho que como eu passou a viagem com a cabeça metida do lado de fora da janela (pelo menos quando não dormia ou eu me metia com ele), outros apenas por uma ou duas paragens. E em mais de trezentos quilómetros e dez horas de carreira local houve muita gente em muitas paragens. Felizmente a lotação nunca esgotou, que os bancos para além de altos, duros e demasiado direitos eram também demasiado estreitos para acomodar duas pessoas lado a lado, mesmo sendo uma dessas pessoas um pequeno e atlético birmanês. Menos outro problema!…

Aquela porta ficou aberta a viagem inteira e um daqueles caixotes caiu em andamento

Pontualmente às cinco da manhã arrancámos para Nyaung-U, a porta de entrada para Bagan. Em Myanmar tudo parece ter uma abundância fora do comum de gente para cumprir um serviço, pelo menos aos olhos de um europeu, restaurantes com mais empregados de mesa que clientes ou hotéis tantos funcionários que por vezes se perde a conta de quanta gente trabalha ali. No nosso autocarro, e para uma lotação de apenas vinte pessoas, havia um condutor, único para toda a viagem que aqui não há limites legais que obriguem a períodos de descanso, alguém que devia ser quem mandava ali, o chefe dos outros dois, era quem recebia o dinheiro dos bilhetes e passou o tempo quase todo sentado; por fim havia a minha personagem preferida dos transportes públicos em Myanmar, o faz-tudo que carrega as bagagens para dentro, coloca o calço de madeira na roda assim que se pára e e fica e maior parte do tempo pendurado na porta a anunciar o destino e ajudar nas ultrapassagens.

Ajudar nas ultrapassagens é essencial, nos anos 70 Myanmar passou-se a conduzir à direita mas a maior parte dos veículos em circulação ainda são anteriores a essa mudança, ou então são os usados em 3ª mão importados do Japão, seja como for em ambos os casos o volante está à direita e ter um par de olhos extra para ajudar com o tráfego em sentido contrário é essencial! O nosso faz-tudo era um verdadeiro personagem, um “Cristiano Ronaldo wanabee”, provavelmente da mesma idade do original mas um pouco mais “gasto”, com bigode e vestido de longyi, constantemente a mascar betel. Qualquer um dos três constantemente mascava, mas ele em particular, mascava como se não houvesse amanhã, tanto que demorei tempo a perceber se tinha uma falha grave de dentição ou se tinha os dentes mais manchados de vermelho que vi em todo o país, mais tarde, e com a luz do dia, percebi que era a segunda opção. Provavelmente era daí que vinha a sua energia tremenda, para além de todas as funções que acumulava, não parava sentado e ainda estava atento para me apontar os Budas deitados e os pagodes que iam passando no nosso caminho, entre as muitas vezes que ia à porta sempre aberta libertar os escarros tingidos de vermelho de betel.

Região montanhosa algures entre Kalaw e Meiktila

O autocarro arrancou passando por paisagens tipicamente asiáticas e outras nem por isso, como os enormes vinhedos trazidos pelos Ingleses, a última coisa que se espera ver na Ásia é latadas carregadas de cachos de uva. A pouco e pouco. e sempre por estradinhas locais, o caminho ia serpenteando cada vez mais em direcção a Kalaw. Infelizmente era dia de mercado, infelizmente porque não tive oportunidade de parar e juntar mais uns disparos à minha colecção de mercados de Myanmar, apesar de ser um autocarro local, daqueles que param em todas as capelinhas, todas as paragens são feitas em contra relógio e com o mesmo ritual: ainda em andamento o faz-tudo anunciava a plenos pulmões o destino (acredito que era isso que dizia), ainda antes de pararmos completamente saltava fora e accionava o travão de mão (colocava o calço de madeira na roda), o autocarro era cercado de vendedores que  tentavam vender uma bucha através da janela rapidamente enquanto entram e saem passageiros, por fim ele dava sinal ao condutor para retomar a marcha, o pagamento e combinar local de saída já era feito em andamento. E isto várias vezes, dezenas ao longo do dia, algumas apenas com intervalo de poucos minutos. Mas no meio destas paragens todas apenas três ligeiramente mais demoradas: o almoço, sete horas depois de arrancarmos e a primeira vez que estiquei as pernas, e dois abastecimentos de diesel, um deles numa das muitas “áreas de serviço” que vendem combustível em antigas garrafas e garrafões de água.

Kalaw é uma base popular para vários trilhos de trekking pela região montanhosa em volta e à medida que a estrada se embrenhava cada vez pela região ia-se tornando cada vez mais um trilho e menos uma estrada. Cada vez mais terra batida e calhau e cada vez menos alcatrão, é possível que a última manutenção tenha sido feita pelos ingleses antes da Segunda Guerra Mundial, cada vez mais solavancos mesmo viajando a uma velocidade próxima das marcha humana. Em tempos contaram-me que quando se corre uma maratona o corpo chega a um ponto que deixa de doer, algures por esta altura aconteceu o mesmo com o meu, como que assimilou que as coisas não iam melhorar e que não valia a pena queixar-se, a viagem ficou bem mais tolerável a partir daqui. Conforme nos aproximávamos de Meiktila as montanhas cobertas de densas florestas luxuriantes davam lugar à planície e a estrada voltava a ganhar uma camada de asfalto digna desse nome e muito mais rectas, mas o clima ameno e fresco ficava também para trás e o ar era agora bastante quente, tórrido e seco. Era um sinal que estávamos a aproximar do ambiente que iríamos encontrar em Bagan nos próximos dias, apesar de ainda faltarem umas boas horas até chegar .

A verdade é que ao fim de dez horas, um dia inteiro pela estrada, estava feito num feito num trapo. Mas a verdade é que de todas as viagens por terra em Myanmar, quatro ao todo, esta foi a mais desconfortável mas de longe a menos aborrecida e única onde não tirei o iPod da mochila. Aqui não havia vídeos pop birmaneses que me aborreciam em todos os outros autocarros, eram demasiados estímulos à volta para bloquear os sentidos a ouvir música. Onze horas e meia depois de entrar no autocarro, e umas treze , chegámos a Nyaung-U, com hora e meia de atraso, que por aqui afinal a pontualidade não é uma virtude. A piscina do hotel estava cada vez mais perto, e desta vez não houve nenhuma surpresa!

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Maratona de 10 horas (parte I): num tuktuk a meio da noite

A restaurant  by the road either closing or preparing to open, you never can't tell.

Um restaurante à beira da estrada a fechar de madrugada ou a preparar-se para a abrir, os ritmos e horários nem sempre são óbvios.

A viagem de Nyangshwe a Nyaung U prometia ser épica, 10 horas num autocarro sem ar condicionado que iria percorrer as estradas secundárias do centro de Myanmar. Apesar de serem dois dos pontos mais turísticos do país (Lago Inle e Bagan) aparentemente a única ligação de autocarro que existe é uma carreira normal, ou assim me convenceram no hotel, aceito que tivessem alguma comissão com esta companhia.

O dia prometia ser longo, com o autocarro a arrancar às cinco da manhã, uma hora bastante razoável pois há horários de partida ou chegada tão improváveis, e cruéis para uma boa noite de sono, como três da manhã. E começou logo com um táxi para o terminal rodoviário a ter de alterar o percurso, hora e preço várias vezes por haverem estradas cortadas pela chuva diluviana que tinha caído nos últimos dias; na versão final o combinado foi um tuk-tuk, que na verdade era uma mota com atrelado com bancos de metal corridos, estar no hotel às 3:45 da manhã para nos levar por um caminho alternativo por zonas mais elevadas. De uma maneira geral as estradas em Myanmar são más, antigas e com pouca manutenção, algo que iria comprovar várias vezes ao longo do dia, e apenas me refiro a estradas principais. O nosso trajecto seria uma agitada hora por caminhos rurais e aldeias, sentado num banco de um atrelado sem suspensão e onde cada solavanco da estrada atirava as costas violentamente contra as barras de ferro que impediam de cair borda fora. Uma hora no ar fresco da madrugada numa zona de montanha (o Lago Inle está a mil metros de altitude), e em alguns momentos o motor da moto parecia perder potência, passou-me pela cabeça que ainda iria chegar a pé ao terminal. Tudo isto fez com que ficasse bem acordado rapidamente, apesar das três ou quatro horas de sono, mas na minha cabeça, e a cada salto, só pensava em chegar ao autocarro e aproveitar as horas de menor calor para encostar o banco para trás e dormir o que conseguisse antes que começasse a sentir a falta do ar condicionado.

Só iria dormir 17 horas depois…

Perto do terminal, e já fora das estradas pelo meio do breu e respectivos saltos, o meu sentido de humor ia voltando ao passar pelos autocarros velhos que faziam as carreiras locais, imaginando o que seria fazer a viagem num chaço daqueles.

O karma também tem sentido de humor, por sinal bem estranho e que nos troca as voltas quando menos esperamos…

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